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Pode acontecer que a opinião abaixo se torne desmesuradamente extensa; não seria de estranhar se assim o fosse, pois os últimos quatro meses passei-o com este romance de 1088 páginas. Vou-vos contar o princípio da minha experiência de leitura. Comecei a obra a 23 de Maio – a 26 de Junho, com um terço do livro lido, descubro que afinal a edição que tinha cortava longas partes e resumia outras. Comprei um volume único com toda a história e reiniciei a leitura. Em post de 27 de Junho, referia que a crítica poderia demorar, assim, “mais uns tempinhos”. Esses “tempinhos” acabaram por ser mais de três meses. Há muito tempo, diria anos, que não demorava tanto a ler um livro. É certo que era grande, mas não justificava três meses.
Os Miseráveis, do autor francês clássico Victor Hugo, era uma das obras que estava na minha mira desde há tempos. Não conhecia nada da história, absolutamente nada. E no entanto a curiosidade dominava-me sempre que ouvia o título. Quando o recebi nos meus anos, no princípio de Maio, soube de imediato que não conseguiria evitar a sua leitura nos tempos mais próximos. Aconteceu vinte dias depois, e o resto já expliquei acima.
Este romance é grandioso. Mas tenho de começar com uma expressão chave importantíssima para classificar a minha crítica: sentimento ambíguo. Victor Hugo não hesitou nas suas escolhas, e ao decidir misturar ficção com não ficção criou um texto irregular, principalmente para o leitor. Ou seja, o que me incomoda não são as primeiras cinquenta páginas, que se podiam resumir numa frase: “O bispo de Digne era um homem verdadeiramente bondoso e santo”, as quais são enchidas de pormenores, e ao longo da qual é descrita por completo a personagem do bispo, que acaba por ter um papel curto na acção. Não, não é isso que me incomoda, até porque gostei dessa parte. O problema está nas quarenta páginas da descrição exaustiva da Batalha de Waterloo, no livro “Parêntesis” que engloba uma visão do convento como “ideia abstracta” e “facto histórico”, nas vinte páginas sobre um extracto da história da França, as outras vinte sobre uma revolução que houve, sobre a gíria dos gaiatos franceses… etc. São de certeza às dezenas os devaneios que Victor Hugo faz para lá do necessário à história.
Quando ao autor apetece sair das personagens e do enredo, começa a divagar – e isto sempre com um respeito solene pelo leitor, com expressões como “permitirá o leitor que façamos uma pausa na nossa história”. E eu só a apetecer-me dizer “Não permito, continue lá”. Podia simplesmente passar à frente, mas isso seria ridículo, visto que eu próprio quisera ler a versão sem ser abreviada. E a verdade é que, no fim, os meus olhos passaram por cada palavra d’ Os Miseráveis! Mesmo que, em certas passagens mais políticas e de linguagem administrativa ou militar, o meu cérebro como que se desligasse para meio gás, e apenas ficasse com uma ideia geral do que estava a ler. Tinha que ser, porque se estivesse concentrado e entender cada detalhe do que estava a ser falado, a leitura durava-me quase até ao fim do ano.
Mas a história que temos como enredo é… linda. Arrebatadora. Em linhas gerais, a sinopse da história poderia ser qualquer coisa como isto: ao cair da noite, chega à cidade de Digne um homem de nome João Valjean. É um condenado aos trabalhos forçados nas galés, das quais agora foi libertado, e onde passou vinte anos preso pelo roubo de um pão e pelas sucessivas tentativas de fuga. Vem como um despojo de um homem, desolado e sem ânimo, disposto a enveredar novamente por uma vida no crime como único meio de sobreviver. Mas, eventualmente, a sua alma é iluminada, resultado de um encontro que é obra da Providência. E João Valjean torna-se assim um homem muito diferente… ainda assim um reincidente procurado, por ter roubado um miúdo assim que saiu da cadeia.
A obra tem momentos de beleza indiscutível. Um leque gigante de personagens, umas mais interessantes do que outras, é certo, que povoam as imensas páginas do livro. A miséria é um ponto de grande destaque, e vamos tomando consciência das injustiças sociais que existiam na altura. Por vezes são avassaladoras e comoventes, deixando-nos com uma sensação de impotência perante os problemas da sociedade, a pobreza extrema.
Para mim a obra divide-se em três fases de escrita, apesar de no livro existirem Cinco Partes. As primeiras duas formam uma escrita de acção e emoção que considero as melhores conseguidas de todo o livro. Da parte 3 a meio da parte 4 temos uma fase à qual não pude deixar de comparar a leitura de Os Maias, pela descrição dos ambientes, e o estilo de escrita que de certeza foi inspirar Eça de Queirós vinte anos mais tarde. E do meio da parte 4 até ao fim temos um terceiro estilo, que não consigo definir tão bem, mas que em parte mistura os dois primeiros.
A tradução portuguesa, também da época, está muito bem feita e inclui vocábulos clássicos, o que confere ao texto uma veracidade tal que parece que a obra foi escrita originalmente em português. A edição da MEL Editores também está bastante boa, tendo apenas encontrado uma porção ínfima de erros gráficos para o tamanho da obra!
É difícil continuar sem enveredar por caminhos que estraguem a surpresa a quem ainda não leu, e quanto a isso não há com que se preocuparem porque não o vou fazer. Está aqui um livro à minha frente com o qual passei um quarto do meu ano 2010, com o qual passei momentos de aborrecimento, momentos de entusiasmo, momentos de contemplação perante uma obra de arte da literatura. Está aqui à minha frente um romance de qualidade indiscutível, com desvios diria inoportunos para assuntos acerca dos quais não tinha tanto interesse, mas com uma pintura de fundo bem viva e marcante. Temos uma história que aborda vários temas em várias frentes, e que no fundo acaba por ser um ensaio do sentido da vida do Ser Humano. De nunca ser tarde de mais para uma alma se modificar.
Se aconselho? Sim. Um aviso, no entanto, desde já. Quem se aventurar na leitura deste romance de Victor Hugo, e fará essa pessoa muito bem, terá de ter a coragem e a força de vontade para não desistir. Não é uma leitura fácil em certos pontos, e de quando em vez lá o ritmo afrouxa e somos obrigados a ler devaneios políticos ou de outro cariz. No entanto, para aqueles que conseguirem prosseguir, encontrarão nesta obra momentos que valem pelos de aborrecimento, um enredo de fundo que entusiasma, numa linguagem não tão clássica como seria de supor. E quando chegarem ao fim terão uma opinião muito positiva sobre o que terminaram de ler. Não me tendo arrebatado, nem conquistado totalmente, cativou-me o suficiente para poder dizer que estou perante um clássico da Literatura Universal o qual gostei muito de ler. E que um dia, muito longínquo, desejarei com certeza relê-lo. Até lá, inspirar-me-ei em tudo o que resultou da minha leitura para, quem sabe, mudar um pouco a forma de ver o mundo.
Páginas: 1088
Personagens Preferidas: Jean Valjean, Epopina e Srª Thénardier.
Nota: 8/10 (Muito Bom)
Tiago